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Inês Aroso - Escritora

Sempre sonhei ser escritora... Aqui, sou!

Inês Aroso - Escritora

Sempre sonhei ser escritora... Aqui, sou!

Carta ridícula (não, não é de amor)

19.04.19 | Inês Aroso

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Cara Maria,

 

Recebi a tua missiva. Tens toda a razão, sou assumidamente ridícula. Pelas oportunidades que dou a uma amizade, mesmo que me desiludam uma e outra e mais outra vez. Por acreditar que há algo de bom em pessoas que demonstram ser uns valentes trastes. Por esperar sempre que haja compaixão com a minha dor ou com a dor alheia. Por a gratidão ser algo que não consta dos dicionários de vida de grande parte das pessoas com quem me cruzo. Por ainda sofrer ao ver corações negros de tanta maldade, mais por pena deles, do que de mim. Por insistir em acreditar que o bem e os bons vencerão. Por não ter medo que me achem ridícula, mesmo quando ando desajeitada e despenteada. Porque falo alto. Porque me calo. Porque reclamo. Porque elogio. Porque desisto. Porque insisto. Porque acredito. Porque deixo de acreditar. Porque tento mudar o mundo. Porque tento mudar-me para melhor. 

 

Sou mesmo ridícula, Maria. Mas não me importo. E vou explicar-te com uma metáfora (saberás o que é, certamente). Não sou um sucedâneo de chocolate a saber a sabão. Sou chocolate genuíno. Há quem não distinga. Mas há que educar o palato. Ou, então, morrer sem saber a diferença.

 

O meu conselho: continua ao nível dos sucedâneos, pois ouvi dizer que os chocolates estão esgotados, como os combustíveis estiveram nos últimos dias ou só se encontram nas prateleiras mais altas dos supermercados. Não sei se chegarás lá...

 

A tua escritora ridícula preferida,

Chocolateira Gorducha Manca de Canadianas (quatro nomes próprios, como a realeza).

Quando o amor é um carro de corrida em rua de paralelos

14.04.19 | Inês Aroso

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Noutro dia, a Helena perguntava-nos numa rede social: "O que é o amor incondicional?". A resposta mais comum foi: "É o amor entre mães/ pais e filhos". Eu também dei essa resposta.

 

Em todos os outros tipos de amor, sejam amigos, irmãos, namorados, maridos, mulheres, companheiros, primos, tios, sobrinhos, o que for, queremos reciprocidade, caso contrário, esse amor murcha ou fica tingido. Tal e qual como me acontece, às vezes (mais do que deveria), com a roupa na máquina de lavar, quando misturo cores ou ponho a temperatura muito alta.

 

No entanto, vamos sempre (eu e outras pessoas como eu) continuar a cuidar e admirar mais algumas pessoas do que elas a nós. Nem sempre esse amor, amizade, carinho (o que queiram chamar) é recíproco. No meu caso, isto não me impede de continuar a gostar de quem genuinamente gosto e não deixarei nunca de gostar delas. Por causa disso, uns chamam-me coração mole, outros boazinha ou até ingénua... Só para falar nos adjetivos mais suaves e simpáticos.

 

A questão é que há corações que pouco percebem de sinais de trânsito. Nós, que conduzimos a vida com o coração, quando gostamos verdadeiramente de alguém, perdoamos vezes sem conta as infracções: os limites de velocidade, os sentidos proibidos, os semáforos e até deixamos, às vezes, que quase nos atropelem. Podemos perder muitos pontos na carta de condução da vida, mas só sabemos conduzir assim: com o próprio coração, embriagado de excesso de amor pelos outros.

 

É preciso muito para deixar-mo-nos de dar aos outros. Mas quando estes põem em causa a nossa felicidade, temos que nunca mais passar por essa rua. Ou então passar de outra forma. Dentro dos limites. Sem quebrar regras. Sem deixar que passem por cima de nós.

 

Garanto-vos, dói-nos muito. Mais do que a eles. Para nós, perceber que alguém que, um dia, consideramos que gostava de nós na mesma medida, afinal tem-nos em pouca conta, é perder um pedacinho do coração. 

 

Mas a vida segue. E o amor-próprio sara a ferida. Tal como os verdadeiros amigos. Esses, que estarão sempre lá para nós. E o coração reconstrói-se. E continuará a achar-se um carro de corrida pelas ruas de paralelos desta vida.

Dor do membro fantasma

14.04.19 | Inês Aroso

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Queria seguir em frente.

Esquecer as injustiças.

A maldade e insídia dos actos.

Olhar para o futuro.

 

 

Queria perdoar.

Mas é difícil sem perceber os motivos.

Não consigo entender as razões.

Merecia uma simples explicação.

 

 

Queria fazer o luto.

Mas arrancaram-nos um bocado.

A mim e aos meus.

E dói-me muito, por mim e por eles.

 

 

Os diletantes prosseguem. 

Desfilam em terra queimada e brilham!

Adornam-se com os despojos alheios.

Só assim ocultam as almas vazias.  

 

 

Queria fazer o luto.

Queria perdoar.

Queria seguir em frente.

Mas só me resta a dor do membro fantasma.

Amor pintado nas paredes

10.04.19 | Inês Aroso

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Madalena era a última das românticas. O último do sexo masculino era eu. Conversei com ela, numa tarde de Primavera, e contou-me a sua história. Era para ser uma entrevista sobre as mulheres que abdicam da carreira para gerirem a casa e educarem e cuidarem os filhos. O jornal para onde trabalhava pedira-me uma reportagem sobre esse tema e eu lá fui. Para mim, era incompreensível, em pleno século XXI, mulheres com formação média ou até com cursos superiores deixarem tudo para ficar em casa. Era uma cena típica de filme americano. Mas parti para a entrevista sem preconceitos nem estereótipos. Aliás, era assim que sabia que se fazia uma boa entrevista.

 

Sentamo-nos no salão de chá que sugerira. Percebi que era cliente frequente, pela forma como conversava com as funcionárias. Percebi, também, pelo seu olhar e pela sua serenidade, que era uma mulher inteligente, perspicaz, dinâmica e muito determinada. Não era nada do que eu estava à espera (lá estava eu a fugir para as imagens pré-concebidas).

 

Contou-me que tirou um curso de Marketing e Publicidade, uma excelente aluna, que aspirava ser publicitária. Apesar disso, acabou por trabalhar, de forma brilhante, num sector altamente concorrencial (e pouco criativo) ligado às finanças e à bolsa. Casou com o namorado de longa data e teve o primeiro filho. No início, ainda conseguiu conciliar a vida profissional e pessoal. Com a chegada do segundo filho, a empresa foi implacável e despediu-a, claro que contornando a lei e sem grandes hipóteses de contestação. 

 

Mas Madalena não era uma mulher de ficar à espera que a sorte lhe batesse à porta. Foi à luta e foi colocada no departamento de marketing de uma grande empresa. Ainda esteve lá dois ou três anos, mas, mais uma vez, teve que sair. Neste caso, porque estava a fazer sombra a algumas pessoas que não a queriam ver brilhar tanto. Ainda tentou um outro local e, pouco tempo depois, estava numa empresa na área de seguros, mas era um contrato precário e não foi renovado. Desta vez, foi muito humilhada, ela, uma profissional experiente, competente, com capacidades de concretização e liderança acima da média. Ela sabia o que valia. E prometeu a si mesma, com acordo do marido, fazer uma pausa. Dedicar-se à casa, a toda a gestão doméstica, e aos filhos, enquanto não surgia uma oportunidade digna das suas reais aptidões. "As mulheres nunca foram tratadas em pé de igualdade com os homens no mercado de trabalho e dificilmente o vão ser", disse-me, convicta, mesmo sendo eu homem e estando ali, em frente a ela.

 

Explicou-me que aproveitou para colocar a casa em ordem, tinha muito jeito e gosto para a decoração e para a gestão em geral. Fez as arrumações que sempre quis fazer. Ficou disponível para levar e trazer os filhos da escola, levá-los às atividades, ajudá-los nos trabalhos de casa, fazer todas as refeições e, muitas vezes, fazer o papel de pai. O marido trabalhava numa multinacional que exigia muitas viagens ao estrangeiro e ela era a âncora da família. Era ela que permitia que a casa se mantivesse um lar.

 

Entretanto, eu estava deliciado, a ouvi-la, sem dar pelas horas passar. Mas ela, atenta, diz que que tem que ir buscar o filho à escola. Pediu-me imensa desculpa e perguntou-me se podíamos marcar para outro dia a continuação da entrevista. Na verdade, eu já tinha ali material suficiente para a reportagem, mas estava a gostar tanto de a ouvir que concordei. Aliás, sentia que o melhor da história ainda estaria por chegar. Era uma intuição jornalística ou simplesmente uma boa desculpa para a rever.

 

Combinamos para o dia seguinte, no mesmo sítio, de manhã, depois de ela deixar os miúdos na escola. Cheguei mais cedo, desta vez. Estava curioso por continuar a ouvir a história da Madalena. Esqueci-me de por o gravador a gravar, mas fui tomando notas no bloco de apontamentos. Cada vez estou mais fascinado por aquela mulher, que apenas conheci na véspera, e cada vez menos preocupado com a reportagem. Falou-me de como geria a casa, de como ajudava os filhos e o marido, de como aplicava a sua criatividade e dinamismo a organizar tudo, desde o quotidiano, às férias, às obras em casa, às compras, a tudo de que vive uma família. Contou-me também de planos para uma loja que queria abrir quandos os filhos fossem mais autónomos.

 

Quanto mais a ouço, mais a admiro. A dada altura, o jogo inverte-se e começa a fazer-me perguntas, sobre mim. Conto-lhe que, além de ser jornalista freelancer, gosto muito de artes plásticas e, de vez em quando, lá faço uma exposição, mas que a maioria das pinturas ficam em casa, no sótão. Ela diz que adora artes e que quando eu tiver uma exposição quer ir ver, que eu tenho o contacto dela, para a avisar.

 

Passam umas semanas, a reportagem é publicada e envio-lhe um email a avisar. Ela responde a dizer que já leu e que adorou. Que adorava ver os meus quadros. Eu respondo-lhe que só tenho quadros em casa, naquele momento... E ela responde-me o que eu mais temia: "Tenho a tarde livre, os miúdos vão passar a tarde a casa da avó". Apesar de só ter estado com ela duas vezes, eu sentia uma forte atracção por aquela mulher e sabia que com ela não poderia ter um simples caso, como os muitos que tivera ao longo de quase 20 anos de casamento com a Irene. Ela não era mulher de se contentar em ser um pedaço na vida de alguém. Ela era um mulher para ser o mundo de alguém.

 

Resolvi encarar as coisas com normalidade, e lá a recebi para ver os quadros. Toda ela cheirava bem e irradiava luz. Tinha uma classe natural e uma força às quais era difícil ficar indiferente. Entregou-me um ramo de flores do quintal dela (sim, também se dedicava à jardinagem). "Os homens também merecem flores"; disse-me, sorrindo. Pedi desculpa pela desarrumação "normal numa casa com miúdos" e lá fomos até ao sótão.

 

Fiquei a saber que ela além de apreciar, percebia mesmo de pintura. Corria tudo normalmente, até que ela me pergunta: "Queres-me pintar? Adorava ter um quadro meu... Nua". Devo ter ficado de todas as cores. Tentei balbuciar qualquer coisa, mas não consegui. Percebi, finalmente (dizem que nós, homens, somos um bocado burros nessas coisas) que ela também se sentia muito atraída por mim. Perante o silêncio embaraçoso, ela com habilidade ri-se e diz: "Estou a brincar, quem é que me ia querer nua... Às vezes, até fujo do espelho". Eu caio no jogo e confesso: "Eu não me importava nada... És uma mulher linda... Mas tenho medo de cair em tentação". Ela sorri... Olhamos um para o outro. Sabemos que não vamos fazer nada. Somos os últimos românticos num mundo imperfeito, por isso as nossas vidas nunca poderão caminhar lado a lado. Toco-lhe no rosto, desço a mão pelo pescoço, sinto a respiração dela... Abraço-a, mas o abraço fraterno esconde uma enorme vontade de a despir, ali, de a pintar, de fazer do corpo dela uma tela. Ela quase não resiste, dá-me um beijo na face, mas muito perto da boca. Os nossos corpos estão numa luta, para não cederem, para não se entregarem. Toca o meu telemóvel com um toque estridente, suspiro: "É o diretor do jornal, tenho que atender". "Claro, claro...", responde. Recompomo-nos. Fingimos que nada aconteceu. Despedimo-nos cordialmente. Percebemos que é melhor para ambos não nos encontrarmos.

 

De vez em quando, saio de propósito na paragem do metro perto do salão de chá onde a conheci. Noutro dia, vi-a. Ela apanhou-me a observá-la. Fiquei atrapalhado e fugi, como um adolescente. Logo de seguida, ela mandou-me uma mensagem: "Continuo à espera do convite para a pintura..." Não respondi. Não posso. Sei que ela me compreende. Não lhe posso oferecer o que ela merece: o mundo.

Escondes-me no teu olhar?

06.04.19 | Inês Aroso

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Título: Cláudia Azevedo

Fotografia: Inga Freitas

Texto e olhar: Inês Aroso

 

Sara, 41 anos, cabelos castanhos, entra na sala quase vazia do café e escolhe o lugar do canto. Aquele local, miraculosamente esquecido pelos turistas que invadem a cidade, foi dos poucos que manteve a sua essência, entre o familiar e o decadente. É frequentado pelos velhinhos do costume, por algumas famílias do bairro, mas nada de modernices, nem de pontos no TripAdvisor ou indicações no Google Maps. Uma meia-de-leite continua a chamar-se uma meia-de-leite, uma torrada é simplesmente uma torrada e os queques (deliciosos por sinal) são só mesmo os de comer. Aguarda por Pedro, que ficou de ir rever um texto para entregarem ao editor.

 

As folhas amontoam-se, enquando Sara vai revendo o trabalho. Quando Pedro, 38 anos, cabelos pretos, entra e sorri, Sara deixa cair as folhas. Corada, tenta desculpar-se com a habitual falta de jeito para manter as coisas em cima da mesa. Não acha sensato dar a verdadeira explicação: a presença dele deixa-a sempre incapaz de pensar por alguns segundos. Fica ainda mais desorientada, ainda mais descoordenada, ainda mais sem palavras do que o habitual. Mas consegue recuperar (embora com algumas recaídas pelo meio) e lá acabam a revisão do texto.

 

Entretanto, o café já encheu, com as velhinhas que vão tomar o chá com os famosos queques, na última fornada da tarde. Resolvem pedir um para cada um e Sara vai mordiscando o bolo e perde-se em pensamentos. Gostava de não sentir o que sente. É uma mulher forte, não lhe agrada que um homem a enfraqueça. Que a baralhe. Que a faça perder o controle da situação. Que antecipe as acções dela. Que lhe leia os pensamentos no olhar. Que a conheça melhor do que ela mesma. Que a faça dizer o que não quer. Que a faça fazer o que não quer.

 

Ao despedirem-se, Pedro convida-a para ir a casa dele, que fica logo ao lado, para lhe emprestar uns livros. "Desde que não me assedies", avisa sorrindo. Ela, corada, finge amuar e responde: "Tens-te em grande conta. O único crime que posso cometer é roubar-te um livro". E seguem na calçada, com Sara concentrada em não cair nem tropeçar. À entrada do prédio, Sara finge que se esqueceu de um compromisso e diz que afinal não tem tempo. "Estás a mentir", diz Pedro. Sara garante-lhe que não. Ele cala-a com um beijo. Sobem de mãos encostadas...

 

Na sala, nem olham para os livros, é como se o armário estivesse vazio. Não há livros, não há porta-retratos, não há recordações pirosas, não há nada. Mas há um sofá onde se sentam em silêncio e os corpos chamam um pelo outro. Têm um medo tremendo de estragar a amizade. Mas ela despe-se, sem pensar muito. Arrepende-se, porque na verdade é tímida, e esconde-se atrás das cortinas. "Estão a ver-te do outro prédio", avisa-a Pedro. Ao que Sara responde, com uma gargalhada: "Antes eles do que tu...". E sorri, sem saber como travar aquele jogo de sedução que testa os limites de ambos. Sara ganha coragem ou perde o juízo (tudo é relativo) e pergunta-lhe: "Escondes-me no teu olhar?".

 

Epílogo: O resto da história é de Pedro e Sara. Ou será de Sofia e Rita? Ou será de Luís e Vasco? Ou será de mim e de ti? Ou será de ti e dele? Ou será de ti e dela? Escondam-se, percam-se e encontrem-se no olhar de quem amam e desejam. Mesmo que seja apenas num conto, num filme, numa música, numa dança, num sonho. A ficção é tão mais completa do que a realidade. Abracem-na.

Buraco negro

05.04.19 | Inês Aroso

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Sabes o que é um buraco negro? É onde tudo começa. É onde tudo acaba.

Para mim é um buraco no peito. Vês-me de um lado ao outro.

Sentes o vazio. Um vazio que dói.

Mas as pessoas passam. Não reparam em mim.

Outras riem. Outras fingem que não vêem, incomodadas.

Às vezes visto um casaco grosso. E disfarço. Pareço inteira.

Ou, então, abraças-me. Com as tuas palavras. E eu brilho, como uma estrela.

 

Lembras-te da última vez que saíste à noite?

04.04.19 | Inês Aroso

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Noutro dia, encontrei-me com a Isabel para tomarmos um café e perguntei-lhe: “Lembras-te da última vez que saíste à noite?” Ela hesitou um pouco, mas respondeu-me: “Ah, foi no sábado passado…”. “Que sorte”, pensei eu, com vergonha de confessar há quantos meses, ou melhor, anos, não saía para ir jantar fora, ver um filme, dançar, encontrar-me com amigos.

 

De repente, a Isabel, que percebeu o meu embaraço, começou a rir-se às gargalhadas: “Achas que tenho tempo para sair à noite? Saí no sábado passado para ir buscar o Tiago a um jantar em casa de uns amigos… Eu saio à noite, mas como motorista, para ir levar e buscar os meus filhos adolescentes às festas”.

 

Suspirei de alívio e confessei-lhe: “Ah, afinal não sou a única, também tenho que ir levar a Leonor aos jantares de aniversário, sim, porque agora, nestas idades, já não fazem as festas de tarde… No fundo, são essas as minhas grandes saídas noturnas”.
“Aviso-te já que isto tem tendência a piorar… o mais velho, o Rui, já tem 17 anos, vou busca-lo à discoteca, 2 ou 3 da manhã, cheia de sono… “, alertou Isabel, enquanto vagueava com os dedos pelo longo cabelo castanho, sempre impecável.

 

Conversamos mais um bocado, sobre as férias que gostaríamos de tirar, sobre o encontro que tínhamos que marcar, a saída que deveríamos fazer. Mais tarde, a caminho de casa, pensei nisso, no quão bom seria que pudéssemos sair descansados, de vez, em quando, com as amigas, com os maridos, com os namorados, ou até com a vizinha do lado, com a certeza que os miúdos graúdos ficavam bem.


Dou por mim a ter vontade de ser outra vez esta adolescente (ser mãe de adolescente tem destas coisas paradoxais). Sofremos bastante, temos as hormonas aos saltos, não percebemos o estúpido mundo dos adultos que só pensam no trabalho e nas contas, nas regras, nas obrigações. Era tão bom poder sair à noite, divertir-me, esquecer-me de todos os aborrecimentos do dia-a-dia e saber que no final, poderia chegar a casa e tudo estava no lugar.

Texto originalmente publicado na: MagNext da Next 2 You.

 

Lina, mulher a dias

02.04.19 | Inês Aroso

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Lina ama a dias. Despe o corpo de pudores. Veste a alma de sonhos.

Ama dia-sim, dia-não. Nos dias em que não ama odeia. Odeia o amor. 

Nesses dias-não, amaldiçoa o dia em que o conheceu. Recorda momentos que viveu com ele com tanta nitidez e pormenor que os poderia imprimir numa tela gigante, sem perder resolução. Os seus olhos rasgados, o seu sorriso, as mãos que a conduzem sempre, apenas e só, até onde ele a quer levar.

 

Quer pensar no mal que ele lhe causa, para o poder esquecer. Sabe que enquanto o odiar o vai continuar a amar (mesmo que seja só a dias). Nos dias em que ele quiser. Nos dias em que ela o deixa invadir o seu dia, o seu íntimo, as suas noites, o seu leito.

 

Quando ele a faz rir, ela sente a vertigem, da caminhada junto ao abismo. E, às vezes, incauta, segue-o.

 

Por vezes, Lina afasta-se. Mas a presença dele reforça-se nessa ausência. Quanto mais se quer esquecer dele e se afasta, mais pensa nele.

 

Poderiam ser amantes. E não são? Não. Na verdade, nunca foram.

Poderiam ser amigos. Mas também não são, não há amizades a dias, ao contrário dos amores.

Poderiam ser namorados. Ou até casar. Mas se calhar ele não a achou mulher para casar. E sim, casou. Mas não com Lina.

São algo que não encaixa em nenhum catálogo dos relacionamentos.

 

Às, vezes, vão ao cinema, numa sessão da tarde, com pouca gente. Noutras alturas, vão jantar com amigos, escondem-se, beijam-se e deixam a sangria levar a melhor. No dias de sol, adoram fugir mais cedo do trabalho e passear descalços na praia. Mais raras vezes, enroscam-se no sofá de casa dela (claro!), a lerem livros e verem televisão. Também planeiam viagens, que nunca farão. Pelo menos, juntos. Mas ela costuma adormecer, sozinha, a imaginar a viagem que fariam. O livro que leriam juntos. A fantasia que realizariam juntos.

 

Lina podia esquecê-lo. Arranjar alguém, por inteiro. Tem tudo para o conseguir: beleza, inteligência, pretendentes. Mas não consegue libertar-se. Sente-se um despojo de um temporal. Diz-se por aí que é algo chamado paixão.

 

Ele não é o mau-da-fita, nem ela, a leviana inconsequente. A diferença é que ele vive. Ela apenas sobrevive.

 

Lina ama a dias, para não morrer de amores.