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Inês Aroso - Escritora

Sempre sonhei ser escritora... Aqui, sou!

Inês Aroso - Escritora

Sempre sonhei ser escritora... Aqui, sou!

Os cães ladram...

28.05.19 | Inês Aroso

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... e a caravana passa. Mas isso é nos sítios vulgares. Ali, naquela terra perdida entre o norte o sul, o este e o oeste, entre a cidade e a aldeia, entre o silêncio e o barulho ensurdecedor, entre o passado e o futuro, não passam caravanas. Apenas se ouvem os cães a ladrar. Todos os dias, à mesma hora: 22h06. São quatro ou cinco cães, talvez mais. Ninguém vai às janelas ver o que passa. Têm medo que atrás dos cães venha gente. Ou uma comitiva do PAN.

 

 

A lágrima solitária

27.05.19 | Inês Aroso

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Não era uma tarde igual às outras. Primeiro, uma lágrima escorregou-me pela face. Foi-se juntar a ela outra lágrima, que escorregou pela outra face.

A lágrima não sabe ser sozinha. Eu também não. Sinto-me sozinha desde que a nuvem negra me cobriu. Há quem não goste de me ver assim, há quem não tenha paciência para me aturar assim, há quem eu não deixo que me veja assim… Algumas pessoas afastaram-se. Afinal, se eu mesma me afasto de mim, quem sou eu para censurá-los?

Como é que tudo começou? Foi a vida? Foi o destino? É algo genético? Inicialmente, culpei o trabalho e a minha incapacidade de lidar com a maldade alheia. Depois, comecei a pensar noutras coisas. Nas boas e nas más. As boas memórias fazem-me sentir nostálgica e choro. As más memórias entristecem-me e choro. Quanto sinto força, escrevo.

Umas vezes desisto. Outras vezes insisto. Penso em quem amo. Persisto. Tenho que ir à luta. Tenho que ser feliz. As coisas começam a ficar mais claras quando apenas uma palavra brota da minha alma: mudança! Preciso mudar de trabalho, de casa, das pessoas que não me querem bem.

Estou cansada de chorar, lágrimas visíveis e invisíveis. Preciso que alguém me abrace e diga: vai ficar tudo bem! Até lá, continuo só, sozinha, solitária, como cada cada lágrima que caiu naquela tarde. Não tenho medo de chorar, já tive. Agora, temo deixar de sonhar.

Ângela, mãe a cores

05.05.19 | Inês Aroso

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Ângela tem 41 anos, dois filhos, é casada. Quando a filha mais velha entrou na universidade, resolveu voltar a estudar. Como estava desempregada, para ajudar nas despesas, ficou a trabalhar em part-time na secção de limpeza da universidade da filha. Foi a vaga mais fácil: os mais novos não queriam esse tipo de “trabalho sujo”, preferiam ficar na biblioteca, na reprografia ou, na pior das hipóteses, nos bares ou nas cantinas.

Aparenta ser mais jovem, é magra, veste-se de forma jovial, num estilo hippie, algumas trancinhas no cabelo, pulseiras em couro, e sempre muitas flores, na roupa, nos brincos e até na tatuagem que fez quando a filha nasceu, em forma de amor-perfeito. Quando está a trabalhar, toda esta cor fica escondida por debaixo de uma feia e fria bata branca e o cabelo é preso com um elástico.

Não se importa com o trabalho que arranjou, porque, para ela, não há trabalhos menores: tudo depende da atitude de quem os executa. E ela coloca tanto empenho e carinho naquele serviço como nos estudos no curso de Psicologia, nos quadros que pinta, nos cozinhados que faz para a família, no voluntariado que faz uma vez por semana no hospital. 

Sempre fora assim: dedicada e generosa. Quando fez 18 anos, começou a vender na rua os quadros que pintava e a desenhar alguns retratos. Foi assim que conheceu o marido, músico de rua. Quando o relacionamento ficou sério, resolveram viver juntos e arranjar um trabalho mais estável. O marido ainda conseguiu emprego como técnico de som num bar, embora mal pago era certinho, mas Ângela fez um pouco de tudo: foi ajudante de cabeleireira, lavou pratos em restaurantes, trabalhou num quiosque, numa frutaria.

Nunca deixou o amor pela pintura e foi precisamente depois ter estado a pintar, numa tarde de sábado, enquanto a filha a ajudava a limpar os pincéis e as aguarelas, que percebeu que ela estava doente. Não era uma doença evidente, mas Ângela sabia-a doente. O brilho no olhar parecia sumido. Dizia estar sempre cansada. Tinha deixado há semanas de ir correr, algo que sempre adorara. Deixou de sair com as amigas e até de as levar lá a casa. Na escola, continuava a ser uma aluna brilhante, com média de 18 valores. O médico receitou-lhe vitaminas.

Ângela pressentia que o problema não se ia resolver com vitaminas. E a sua intuição de mãe estava certa. Depois de várias consultas médicas, soube que a filha tinha uma perturbação grave de ansiedade, que a levara a isolar-se e a entrar em depressão. Ângela passou de uma fase em que se culpava, para outra fase de revolta, seguindo-se a luta. Foi sozinha ao médico e à psicóloga para fazer perguntas, pesquisou sobre o assunto na biblioteca e na Internet. Até resolveu tirar o curso de Psicologia, para a poder compreender e ajudar mais.

Todos os nomes do amor

02.05.19 | Inês Aroso

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- "Avó, conta-me histórias de amor", pediu-lhe Sofia, de 15 anos, enquanto viam os barcos no cais, sentadas no banco, encostadas uma à outra, com carinho.

- "Está bem, Sofia, mas quando o veleiro partir, vamos para casa... Ora bem, vou começar...

Isaac apaixonou-se por Ellah assim que a viu, quando chegou à Universidade, em Paris, para um programa de intercâmbio de estudantes. Os amores à distância são difíceis, mas o deles superou as barreiras espaciais, culturais, linguísticas e do senso comum. Passados 3 anos, casaram-se, em Espanha, onde ainda hoje moram, são felizes e pais do pequeno Diego.

Filipe casou-se com Isabel, foi traído por ela, mas mesmo assim, continuou a amá-la. Não sabia viver sem ela. Até que conheceu Lara e desistiu de viver um amor assimétrico. Os amores desnivelados acabam sempre por fazer alguém cair no chão ou ter vertigens. É mau para o que ama de mais. É ainda pior para o que ama de menos.

Helena teve um único grande amor na vida: Rafael. Física e psicologicamente. Não conhecera outro homem. Não sentira vontade sequer de descobrir outras formas de amar e ser amada. A vida dela era a vida dele, quase que de modo simbiótico. Era uma relação turbulenta, mas indissolúvel.

Luísa e Teresa viviam apaixonadamente. Eram tão diferentes que ninguém apostaria no amor que as unia. Luísa, gostaria de se chamar Luís. Tinha uma aparência andrógina, olhos pretos, pele muito morena, cabelo curto, roupas masculinas. Era muito confiante e sem medo da opinião alheia. A Teresa tinha cabelos ruivos, compridos, e vestia-se como se vivesse nos anos 60, muito hippie. A magia era essa: a sensibilidade de Teresa e a segurança de Luísa complementavam-nas.

Inês... Olha, a Inês tinha uma história de amor tão complicada que vou ter que contar noutro dia".

O vento mudara. Era tempo do veleiro içar as velas e zarpar. O que era muito conveniente para a avó, que partiu com a neta para casa, mas deixava os nomes do amor no banco, a ver o rio... E o rio corria, como a vida. Que vivera. Que gostara de ter vivido. Que conhecera. Que gostara de ter conhecido.