Amor pintado nas paredes
Madalena era a última das românticas. O último do sexo masculino era eu. Conversei com ela, numa tarde de Primavera, e contou-me a sua história. Era para ser uma entrevista sobre as mulheres que abdicam da carreira para gerirem a casa e educarem e cuidarem os filhos. O jornal para onde trabalhava pedira-me uma reportagem sobre esse tema e eu lá fui. Para mim, era incompreensível, em pleno século XXI, mulheres com formação média ou até com cursos superiores deixarem tudo para ficar em casa. Era uma cena típica de filme americano. Mas parti para a entrevista sem preconceitos nem estereótipos. Aliás, era assim que sabia que se fazia uma boa entrevista.
Sentamo-nos no salão de chá que sugerira. Percebi que era cliente frequente, pela forma como conversava com as funcionárias. Percebi, também, pelo seu olhar e pela sua serenidade, que era uma mulher inteligente, perspicaz, dinâmica e muito determinada. Não era nada do que eu estava à espera (lá estava eu a fugir para as imagens pré-concebidas).
Contou-me que tirou um curso de Marketing e Publicidade, uma excelente aluna, que aspirava ser publicitária. Apesar disso, acabou por trabalhar, de forma brilhante, num sector altamente concorrencial (e pouco criativo) ligado às finanças e à bolsa. Casou com o namorado de longa data e teve o primeiro filho. No início, ainda conseguiu conciliar a vida profissional e pessoal. Com a chegada do segundo filho, a empresa foi implacável e despediu-a, claro que contornando a lei e sem grandes hipóteses de contestação.
Mas Madalena não era uma mulher de ficar à espera que a sorte lhe batesse à porta. Foi à luta e foi colocada no departamento de marketing de uma grande empresa. Ainda esteve lá dois ou três anos, mas, mais uma vez, teve que sair. Neste caso, porque estava a fazer sombra a algumas pessoas que não a queriam ver brilhar tanto. Ainda tentou um outro local e, pouco tempo depois, estava numa empresa na área de seguros, mas era um contrato precário e não foi renovado. Desta vez, foi muito humilhada, ela, uma profissional experiente, competente, com capacidades de concretização e liderança acima da média. Ela sabia o que valia. E prometeu a si mesma, com acordo do marido, fazer uma pausa. Dedicar-se à casa, a toda a gestão doméstica, e aos filhos, enquanto não surgia uma oportunidade digna das suas reais aptidões. "As mulheres nunca foram tratadas em pé de igualdade com os homens no mercado de trabalho e dificilmente o vão ser", disse-me, convicta, mesmo sendo eu homem e estando ali, em frente a ela.
Explicou-me que aproveitou para colocar a casa em ordem, tinha muito jeito e gosto para a decoração e para a gestão em geral. Fez as arrumações que sempre quis fazer. Ficou disponível para levar e trazer os filhos da escola, levá-los às atividades, ajudá-los nos trabalhos de casa, fazer todas as refeições e, muitas vezes, fazer o papel de pai. O marido trabalhava numa multinacional que exigia muitas viagens ao estrangeiro e ela era a âncora da família. Era ela que permitia que a casa se mantivesse um lar.
Entretanto, eu estava deliciado, a ouvi-la, sem dar pelas horas passar. Mas ela, atenta, diz que que tem que ir buscar o filho à escola. Pediu-me imensa desculpa e perguntou-me se podíamos marcar para outro dia a continuação da entrevista. Na verdade, eu já tinha ali material suficiente para a reportagem, mas estava a gostar tanto de a ouvir que concordei. Aliás, sentia que o melhor da história ainda estaria por chegar. Era uma intuição jornalística ou simplesmente uma boa desculpa para a rever.
Combinamos para o dia seguinte, no mesmo sítio, de manhã, depois de ela deixar os miúdos na escola. Cheguei mais cedo, desta vez. Estava curioso por continuar a ouvir a história da Madalena. Esqueci-me de por o gravador a gravar, mas fui tomando notas no bloco de apontamentos. Cada vez estou mais fascinado por aquela mulher, que apenas conheci na véspera, e cada vez menos preocupado com a reportagem. Falou-me de como geria a casa, de como ajudava os filhos e o marido, de como aplicava a sua criatividade e dinamismo a organizar tudo, desde o quotidiano, às férias, às obras em casa, às compras, a tudo de que vive uma família. Contou-me também de planos para uma loja que queria abrir quandos os filhos fossem mais autónomos.
Quanto mais a ouço, mais a admiro. A dada altura, o jogo inverte-se e começa a fazer-me perguntas, sobre mim. Conto-lhe que, além de ser jornalista freelancer, gosto muito de artes plásticas e, de vez em quando, lá faço uma exposição, mas que a maioria das pinturas ficam em casa, no sótão. Ela diz que adora artes e que quando eu tiver uma exposição quer ir ver, que eu tenho o contacto dela, para a avisar.
Passam umas semanas, a reportagem é publicada e envio-lhe um email a avisar. Ela responde a dizer que já leu e que adorou. Que adorava ver os meus quadros. Eu respondo-lhe que só tenho quadros em casa, naquele momento... E ela responde-me o que eu mais temia: "Tenho a tarde livre, os miúdos vão passar a tarde a casa da avó". Apesar de só ter estado com ela duas vezes, eu sentia uma forte atracção por aquela mulher e sabia que com ela não poderia ter um simples caso, como os muitos que tivera ao longo de quase 20 anos de casamento com a Irene. Ela não era mulher de se contentar em ser um pedaço na vida de alguém. Ela era um mulher para ser o mundo de alguém.
Resolvi encarar as coisas com normalidade, e lá a recebi para ver os quadros. Toda ela cheirava bem e irradiava luz. Tinha uma classe natural e uma força às quais era difícil ficar indiferente. Entregou-me um ramo de flores do quintal dela (sim, também se dedicava à jardinagem). "Os homens também merecem flores"; disse-me, sorrindo. Pedi desculpa pela desarrumação "normal numa casa com miúdos" e lá fomos até ao sótão.
Fiquei a saber que ela além de apreciar, percebia mesmo de pintura. Corria tudo normalmente, até que ela me pergunta: "Queres-me pintar? Adorava ter um quadro meu... Nua". Devo ter ficado de todas as cores. Tentei balbuciar qualquer coisa, mas não consegui. Percebi, finalmente (dizem que nós, homens, somos um bocado burros nessas coisas) que ela também se sentia muito atraída por mim. Perante o silêncio embaraçoso, ela com habilidade ri-se e diz: "Estou a brincar, quem é que me ia querer nua... Às vezes, até fujo do espelho". Eu caio no jogo e confesso: "Eu não me importava nada... És uma mulher linda... Mas tenho medo de cair em tentação". Ela sorri... Olhamos um para o outro. Sabemos que não vamos fazer nada. Somos os últimos românticos num mundo imperfeito, por isso as nossas vidas nunca poderão caminhar lado a lado. Toco-lhe no rosto, desço a mão pelo pescoço, sinto a respiração dela... Abraço-a, mas o abraço fraterno esconde uma enorme vontade de a despir, ali, de a pintar, de fazer do corpo dela uma tela. Ela quase não resiste, dá-me um beijo na face, mas muito perto da boca. Os nossos corpos estão numa luta, para não cederem, para não se entregarem. Toca o meu telemóvel com um toque estridente, suspiro: "É o diretor do jornal, tenho que atender". "Claro, claro...", responde. Recompomo-nos. Fingimos que nada aconteceu. Despedimo-nos cordialmente. Percebemos que é melhor para ambos não nos encontrarmos.
De vez em quando, saio de propósito na paragem do metro perto do salão de chá onde a conheci. Noutro dia, vi-a. Ela apanhou-me a observá-la. Fiquei atrapalhado e fugi, como um adolescente. Logo de seguida, ela mandou-me uma mensagem: "Continuo à espera do convite para a pintura..." Não respondi. Não posso. Sei que ela me compreende. Não lhe posso oferecer o que ela merece: o mundo.