Plano de fuga
Fez uma mala, pequena. Pouca roupa, dois livros, um álbum de fotografias. À noite, atrasou todos os relógios e despertadores de casa duas horas, para não darem falta dela, pela manhã.
Eram sete horas quando abriu a porta, devagar, silenciosamente. Tinha treinado aquilo durante dias. Nada podia falhar. Era a última vez. Que descia aquelas escadas. Que subia aquela rua. Que via a varanda impecavelmente florida da D.ª Lurdes ("em minha casa as flores não vivem", pensava sempre). Que sentia o aroma a pão acabado de fazer na padaria do Sr. João. Cada passo que dava apagava o trilho daquele caminho que fizera durante anos.
Desapareceu tão completamente que, passados alguns meses, quase ninguém se lembrava que tinha existido. Nem ela mesma, internada, naquele hospital, negro de tão branco, conseguia recordar quem fora. Sabia que gostava de ler, de ver as fotografias antigas (que percebia serem dela, de quando existira) e, de vez em quando, receber visitas. Eram os resistentes da família e amigos. Chegavam com voz doce, levavam-lhe livros e flores, mas saíam aliviados por irem embora. Magoa muito não poder ajudar quem amamos.
Numa tarde de Primavera, lia um livro junto à janela, quando entrou alguém no quarto que a fez estremecer. Não eram as visitas do costume, não eram os médicos, não eram os enfermeiros. Era ela, a fugitiva. Encontrou-se a si mesma. Afinal, ainda existia! Chorou. Riu. Chorou outra vez.
A fuga falhara! Percebeu que estava ferida. Não se via por fora. Era tudo dentro dela. Mas doía muito. Eram golpes profundos. Nas emoções, na auto-estima, no seu lado racional, nos sentimentos, nas atitudes e impulsos. Mas, pelo menos, descobrira de onde vinha a dor agonizante. Já a podiam tratar. Já não precisava fugir. Só precisava curar os ferimentos e voltar a ser ela. Ela, não. Ela tinha nome: Eva.